A hora mais infeliz do dia
A frota de carros do DF inchou nos últimos treze anos e a cidade dos automóveis vira um inferno ao anoitecer
Foto: VEJA BRASÍLIA
Todo dia útil ela faz tudo sempre igual: no fim da tarde, Brasília recebe quem circula por suas vias com grandes doses de trânsito. E esperar alguém no portão às 6 da tarde, como faz a personagem feminina da música Cotidiano, de Chico Buarque, tornou-se um exercício de paciência. Quando o relógio marca esse horário, uma legião de pessoas deixa o trabalho, entra em seu carro e começa uma luta para chegar em casa. Na cidade dos automóveis, não há mais como fugir de congestionamentos, seja qual for o seu destino - Taguatinga, Lago Norte ou mesmo as quadras da Asa Sul. Atualmente, quem deixa o Plano Piloto ou se desloca de uma entrequadra para outra das 17 às 19 horas roda a uma velocidade média de 12 quilômetros por hora nos pontos mais críticos.
O aumento do trânsito na capital não ocorreu de um momento para outro. Trata-se de um processo gradativo, mas com o pé fincado no acelerador. Do ano 2000 até o mês passado, a quantidade de carros no DF aumentou 151,3%, segundo dados do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF), uma média de crescimento de 7,5% ao ano. Hoje temos uma frota de 1,47 milhão de veículos, número praticamente igual ao de motoristas habilitados.
"O problema do tráfego em Brasília virou uma questão física. Não há mais espaço para comportar tanto carro", avalia Murilo de Melo Santos, superintendente de Trânsito do Departamento de Estradas de Rodagem do Distrito Federal (DER-DF). Se se mantiver nesse ritmo a expansão sem que nada seja feito, a estimativa da Secretaria de Transportes é que até 2020 haverá um colapso.
Além da Saída Sul e da W3, acredita-se que o próximo ponto de estrangulamento viário da cidade será a Ponte JK e, junto com ela, o trajeto para os condomínios daquela área. Com a construção do Residencial Alphaville na DF-140, o número de moradores da região deve chegar a 900 000 nos próximos quinze anos. O caos deve ser parecido com o que já ocorre na Saída Norte, onde não se imaginou a construção de tantas casas.
Foto: Michael Melo
Davi Hoerlle: ele já escutou até aulas do cursinho enquanto fica parado no Eixo Monumental
Estudo sobre rodas
Desde 2010 trabalhando no Setor de Autarquias Sul, o advogado Davi Hoerlle, 26 anos, viu-se obrigado a encarar um trânsito infernal para chegar em casa, no Sudoeste. Fora do horário de pico, completa a rota em quinze minutos. Às 18 horas, quando encerra o expediente, gasta o dobro do tempo. "Logo no início, ficava agoniado. Mas decidi fazer uso desse tempo ocioso dentro do carro", revela. Cansado de escutar música e notícias, resolveu mudar o repertório. Tentou de tudo um pouco, inclusive estudar. Escolheu vídeos de cursinho para concurso, gravou-os em um pen drive e passou a ouvir as aulas no sistema de som do carro. Entre uma freada e outra aprendeu sobre leis. "Isso me ajudou muito a entender umas matérias que são tediosas de ler, mas ganham interesse quando alguém as explica verbalmente", diz. O sonho de uma carreira pública passou. Como o trânsito continua o mesmo, ele se esforça para, muitas vezes, sair do trabalho um pouco mais cedo e fugir do fluxo intenso. Ou, na pior das hipóteses, ficar até mais tarde no escritório.
Foto: VEJA BRASÍLIA
Neste momento, os engarrafamentos estão generalizados. De acordo com informações do aplicativo para celular Waze, no qual usuários marcam os locais de trânsito moroso, a extensão média das viagens de carro em Brasília é longa, cerca de 24,1 quilômetros. "Há algo único na distribuição espacial de passageiros em Brasília. Eles se deslocam mais nos dias comerciais do que durante o fim de semana", aponta um estudo recente do Waze.
A média de tempo gasto nos deslocamentos sobre quatro rodas depende de outros fatores, além das grandes distâncias. Para fazer esse cálculo devem-se levar em conta o dia da semana, as condições meteorológicas e a presença de acidentes no percurso.
Ainda de acordo com o relatório preparado pelos administradores do Waze, o trânsito na cidade já tem um perfil geral definido. O dia mais tranquilo para chegar ao trabalho é a segunda. Na hora da volta, a terça é o menos ruim. E o fluxo mais intenso ocorre nas sextas à noite.
O DER-DF tem um levantamento sobre a interferência do tráfego na vida dos motoristas. Em horários sem engarrafamentos, o percurso de 23 quilômetros da rodoviária do Plano Piloto ao estádio Augustinho Lima, em Sobradinho, é feito em 21 minutos. O mesmo caminho consome uma hora e dez minutos quando iniciado às 18 horas. Na ligação entre a rodoferroviária e a Praça do Relógio, em Taguatinga, a variação é de vinte minutos a uma hora, em média. Da L4 até a Esaf, atravessando a Ponte JK, o tempo previsto salta de quinze para quarenta minutos por causa do aumento do trânsito.
Foto: VEJA BRASÍLIA
As dificuldades sobre o asfalto estabeleceram uma nova rotina local. Boa parte dos que enfrentam o percurso para casa depois do expediente recorre aos smartphones. Os aplicativos que mapeiam o trânsito são muito empregados para encontrar um caminho alternativo ou, pelo menos, um trajeto menos congestionado. Há quem use o tempo parado para fotografar os carros em volta e postar as imagens nas redes sociais, bem como motoristas que brincam com jogos no celular - mesmo sabendo que usar o telefone ao volante é uma infração de trânsito, sujeita a multa de 85,13 reais.
Existe também o tipo que prefere escapar completamente do trânsito na hora de pico. Das 18 às 20 horas, fora a opção majoritária pela mesa de um bar ou um restaurante, muitos se matriculam em aulas de línguas ou em cursinhos para concurso. No grupo dos que evitam trafegar em primeira marcha, há ainda os frequentadores das academias de ginástica da cidade, sempre lotadas de segunda a quarta no horário do rush noturno. "É muito comum ouvir queixas dos alunos que fazem academia perto de casa sobre o cansaço pós-engarrafamento. Quando se praticam atividades perto do trabalho, tem-se mais disposição para encarar a volta ao lar e o resto da noite", diz Thiago Mello, gerente comercial da academia World Gym, no Setor Hoteleiro Sul.
Foto: Michael Melo
Ezenildo Xavier: a troca pelo metrô rendeu mais tempo para livros, música e e-mails pessoais
Mudei de transporte
O bancário Ezenildo Xavier, 33 anos, nasceu e cresceu no Plano Piloto. "Já morei na Asa Norte e na Asa Sul. Sempre fui o típico brasiliense: ia de carro a qualquer lugar",conta. Em 2005, após se casar, comprou um apartamento em Águas Claras. No início, manteve a rotina de dirigir para o trabalho, no Setor Bancário Sul. "Ficava um pouco parado no trânsito, mas achava que valia a pena", afirma. Há cinco anos, entretanto, a situação se tornou insustentável. Ele demorava uma hora para voltar do escritório para casa. "Chegava estressado e cansado." Farto dessa rotina, um dia resolveu fazer um teste. Estacionou o carro na estação de metrô mais próxima de casa e pegou o trem para a Galeria dos Estados. Gastou 25 minutos no percurso. A partir de então não teve dúvida de que esse seria o seu meio de transporte. A nova maneira de se locomover rendeu-lhe hábitos diferentes. Passou a ler mais livros, dar mais valorà música e também ganhou mais tempo para responder a e-mails pessoais pelo celular. "A minha qualidade de vida melhorou significativamente. Chego em casa agora com mais disposição e bem mais relaxado para curtir o resto da noite", avalia. Além disso, passou a economizar 300 reais por mês. Os custos de estacionamento, gasolina e manutenção do carro eram altos. Atualmente, ele só dirige para o Plano Piloto quando tem algum compromisso social ou consulta médica após a jornada. "Mas não tem jeito, sempre me arrependo depois. Por isso, já tento marcar as coisas para a hora do almoço para poder ir e voltar de táxi. Dessa forma, consigo manter a minha volta de metrô mais tranquila à noite."
Foto: VEJA BRASÍLIA
Um perfil de comportamento mais novo e crescente é o das pessoas que deixaram o carro de lado e passaram a usar o transporte público. A solução parece óbvia para qualquer grande cidade, mas, aqui, foi muito pouco estimulada ao longo da história. Quando criada, Brasília se transformou em garota-propaganda da indústria automobilística, recém-chegada ao país. Dentro de um modelo que cultuava o transporte individual, os moradores criaram o hábito de usar o automóvel até para comprar o pão de cada dia. "A mobilidade por carro é uma questão cultural da cidade, mas é possível ver que, ao longo do tempo, todo mundo se adapta. Ninguém quer que o trânsito da cidade entre em colapso", afirma Paulo César Marques, professor de engenharia de trânsito da UnB.
A nova capital foi erguida com outra característica muito particular e determinante para a proliferação dos automóveis. Brasília é dividida em áreas residenciais e comerciais, algo que afasta a possibilidade de muitas pessoas morando próximo dos respectivos locais de trabalho. Apenas uma ínfima parcela da população obtém esse conforto.
Até agora, as políticas apresentadas para estancar esse agravamento da mobilidade surtiram poucos efeitos. De olho nisso, o governo do Distrito Federal anuncia investimentos de 4,8 bilhões de reais nos próximos quinze anos para obras no setor. Pelos planos do GDF, esse dinheiro seria usado, por exemplo, na melhoria e no aumento da frota de ônibus, reorganização das linhas, expansão do metrô, criação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e construção de mais uma ponte no Lago Norte.
Caso essas providências saiam de fato do papel, pode-se imaginar um futuro mais confortável e com menos desperdício de tempo para os brasilienses. Medidas paliativas, como o rodízio de veículos adotado em São Paulo, estão, por enquanto, descartadas. "Se fizermos isso, estou seguro de que muitos brasilienses vão comprar mais um veículo", acredita o secretário de Transportes do GDF, José Walter Vazquez Filho, prevendo um desfecho que, sem dúvida, só vai piorar nossa volta para casa.
Foto: Joédson Alves
Sandra Sathie: para fugir dos engarrafamentos, matriculou-se em uma academia e perdeu 12 quilos
Rush de alto impacto
Durante quatro anos, a rotina da engenheira civil Sandra Sathie, de 27 anos, foi a mesma: saía do trabalho às 18 horas no início da L2 Norte e encarava um trânsito de cinquenta minutos até o Lago Norte. Chegava em casa exausta e de mau humor, e logo se deitava para dormir. "Dirigir naquele fluxo intenso de carros me esgotava física e mentalmente. Não tinha ânimo para fazer nada após o expediente", conta. Em janeiro, para tentar fugir do horário de pico e criar uma rotina mais saudável, Sandra se matriculou numa academia no Sudoeste. Ficou animada, pois o local era novo e cheio de opções para fazer exercícios físicos. Passou então a frequentá-la todos os dias após o expediente, entre 18 e 20 horas. Lá, faz musculação com o acompanhamento de um personal trainer e aula de boxe, além de exercícios aeróbicos. Os novos hábitos adquiridos lhe renderam uma guinada na vida. Dez meses com essa rotina resultaram em uma vida social bem mais intensa. Fez mais amizades e diz que ganhou disposição para encontrar sua turma depois da malhação. "Mudou até meu ânimo no trabalho. Eu me sinto mais animada para realizar as tarefas do dia a dia. Também ficava muito gripada e agora não tiro mais nenhum dia de atestado", afirma a engenheira, que emagreceu 12 quilos. "Minha rotina já está adaptada e pretendo levá-la dessa forma para o resto da vida", promete. "Não volto a enfrentar trânsito nunca mais."
http://vejabrasilia.abril.com.br/mat...infeliz-do-dia